sexta-feira, 6 de junho de 2014

Lágrimas de lutador: a lição de Botero ontem no Campo Pequeno

Lágrimas de um lutador - as imagens que marcam a noite de ontem
no Campo Pequeno!
Com casaca ou sem ela, que importaram, afinal, essas
"histórias da carochinha"?...
Duo inesperado de Ventura e Fernandes com um magnífico toiro de Charrua acabou
por fechar com chave de ouro uma noite que podia ter tido um final bem pior.
Ninguém deu por isso que tinha faltado a lide de um toiro e assim ninguém saíu
defraudado, mesmo que o tenha sido... Em baixo, a imagem do triunfo: Botero
envolvo nas bandeiras de Portugal e da Colômbia, na noite em que o sonho
virou realidade



Miguel Alvarenga - Lágrimas de lutador, que ele ontem partilhou com todos. Lágrimas de alegria de um sonho que se fez triunfo. A lição de um menino que quis ser e venceu. Primeiro, Botero, que foi sua a noite e era sua a festa. Afinal e feitas as contas, que importaram as "histórias da carochinha", que importou que tivesse tomado a alternativa sem casaca, que importância tinha se lhe faltava uma ou duas corridas para poder doutorar-se? Bem sei que a lei fez-se para se cumprir, bem sei que não vivemos em anarquia (mas é parecido...), bem sei que há regras e que há trajes e estatísticas exigidas de espectáculos regulamentados. Mas, mais que tudo isso, há sentimentos. E há emoções. A noite de ontem no Campo Pequeno era - foi - uma noite de sentimentos, os sentimentos de um jovem que viveu os últimos sete anos longe da família, dos amigos e do seu país, para em Portugal cumprir o sonho de se tornar toureiro a cavalo. De emoções vividas por todos, e eram cerca de sete mil, afinal, que conhecem a história do sonho-menino de Jacobo e ali o foram acarinhar e apoiar na hora em que o concretizou. E depois, há um Toureiro. Botero já o provara antes e ontem confirmou-o: é um bom Toureiro e vai ser um grande Toureiro. Independentemente do traje que vestir e o dele será sempre este, curto, o de rejoneador, porque se recusou a mascarar-se de cavaleiro, como fez o outro um dia, apenas e só para cumprir a lei e não ser multado. Venha a multa, que isso tanto faz, temos Toureiro. E bom.
Depois de Botero, Rui Bento. O gestor taurino do Campo Pequeno não quis fazer comentários ou prestar quaisquer declarações sobre a corrida de ontem. Assim, sai por cima e não se envolve em contendas, entende-se. Destaque-se então, apenas e só, que ele foi também, muito justamente, um dos grandes triunfadores da noite. Graças ao seu empenho, à sua aficion, ao saber calibrar o gosto dos aficionados e à extraordinária promoção que está a fazer das corridas do Campo Pequeno nos sítios certos, voltou a registar-se uma lotação esgotada. Extraordinário e inédito, em duas noites consecutivas. Creio que por este andar e pelo carisma que está a rodear o Campo Pequeno e esta sua temporada, a mehor de sempre, a novilhada do próximo dia 19 terá uma belíssima casa, melhor que as de anos anteriores. Vem José Garrido, a nova estrela do toureio espanhol - e ninguém vai querer perder.
Volto então agora a Botero. O jovem rejoneador colombiano protagonizou ontem à noite uma das mais aplaudidas alternativas dos últimos anos - é um facto. O público esteve com ele do início ao fim. E isso fê-lo emocionar-se por mais que uma vez, mesmo enquanto toureava e não foi capaz de conter as lágrimas de alegria e de emoção por estar ali, a praça esgotada, o público em delírio, ele a triunfar, a tornar realidade o sonho que o fez certo dia, na Colômbia, ainda menino, chegar perto de Rui Fernandes e segredar-lhe que queria ser toureiro, um dia. O dia foi ontem.
Emocionado, brindou a lide ao Rui e depois colocou-se no centro da arena, venho o toiro, sem bandarilheiros na praça. Uma sorte "de gaiola" que resultou em pleno e que conquistou a praça ao primeiro segundo. O resto veio por acréscimo e em crescendo, numa actuação sempre a subir de tom, cavaleiro, cavalo e toiro em perfeita sintonia, também sinfonia, de alegria, de rigor, verdade e perfeição.
Repetiu Botero a dose no seu segundo toiro e a festa terminou com ele a dar aplaudidas voltas à arena, duas da primeira vez, envolvido nas bandeiras de Portugal e da Colômbia, beijando emocionado a terra da arena lisboeta, despedindo-se quando ainda todo o público o ovacionava, o acarinhava de pé.
Àparte os incidentes da precipitada recolha de dois toiros - de que já aqui falei e ainda hoje voltarei certamente a falar - nada há a apontar ao bom comportamento dos toiros de uma tão prestigiada e séria ganadaria como a de Charrua. Bons os dois primeiros, de excelente comportamento o segundo de Botero, um verdadeiro toiro de bandeira o último, o "sobrero" que, por gentileza emresarial, foi lidado a duo por Fernandes e Ventura. Bem apresentado, a investir com alegria de todos os lados, ninguém percebeu bem por que razão aquele toiro ficara para "sobrero" e por alma de quem não saíu, por exemplo, em vez do de Ventura, o mais pequenote, sem força e que acabou por condicionar o que poderia ter sido um êxito enorme (e com música) do rejoneador que há dois anos ali não toureava naquela arena.
Rui Fernandes reafirmou ontem em Lisboa o momento enorme que atravessa. Vai amanhã a Madrid e vai certamente triunfar, porque mostrou no Campo Pequeno estar mais que preparado e moralizado para isso e muito mais.
O segundo toiro da corrida de ontem era bom e Fernandes foi ainda melhor. Está um Senhor Toureiro. Ferros de muita emoção e de imensa verdade, sem rodeios de fantasia, sem espalhafatos, tudo bem feito e tudo feito na perfeição. Foi uma lide redonda, com detalhes de imensa arte e pinceladas de génio.
É curioso o facto de a história do Rui - que eu conheço bem e de perto desde a primeira hora - ser muito idêntica à de Jacobo e talvez por isso se entenda o apoio e o carinho que Fernandes deu e nutre por Botero. Sem antecedentes taurinos na família, apaixonou-se pelo toureiro e subiu a pulso a corda, chegando onde hoje está por obra e graça, exclusiva, do seu valor tremendo, do seu querer, de acreditar que podia ir em frente. Hoje, é quem é: uma das nossas primeiras Figuras. Deve-o ao apoio fantástico de seu Pai, deve-o a alguns amigos que o acompanharam sempre, mas deve-o sobretudo a si próprio, à sua férrea vontade de vencer.
Diego Ventura justificou a dimensão do seu estatuto de primeiríssima Figura. É um toureiro de um tremendo valor, outro que também veio do nada, que comeu o pão que o diabo amassou e que chegou onde chegou mercê, exclusivamente, do seu querer e do seu desmedido valor. Os seus dois toiros não permitiram retribuir e agradecer ao público a enchente que ele próprio motivou. Era muita a expectativa e ontem viu-se apenas um pouco do muito que Ventura tem para dar. Mesmo assim, suficiente. Um primeiro toiro devolvido, sem força. Um segundo "mais ou menos", numa lide prejudicada pela falta de bom senso do director de corrida, que não lhe concedeu música e não lhe premitiu mais um ferro, exigido em uníssono pela praça cheia.
Mas há males que vêm por bem e os incidentes da corrida de ontem acabaram por permitir que no final saísse, por amabilidade da empresa, o toiro que estava como primeiro "sobrero" e que foi, afinal, o melhor da noite. Fernandes e Ventura lidaram-no a duo num "duelo" de magia e apoteose, que trouxe acima a outra "galáxia" a que pertencem estes dois toureiros de eleição. Sem ensaio prévio, sem estar nada previsto e sem que ambos tenham por hábito lidar toiros a duo, antes pelo contrário, costumam recusar-se a fazê-lo, a verdade é que bailaram em perfeite e total sintonia, numa lide que foi de permanente euforia na arena e nas bancadas e que fechou com chave de ouro a noite, a todos fazendo esquecer as tristes incidências que a antecederam. Dois grandes Toureiros, um toiro fantástico e o público de pé, a sair satisfeito quando esteve quase, quase, a sair defraudado e em revolta. Fernandes, Ventura e o magnífico toiro de Charrua acabaram por virar tudo do avesso. Noite grande, desta feita!
No campo da forcadagem, nada de muito especial a assinalar. Os Charruas não bateram nos forcados, até permitiram pegas excelentes e sem dificuldades de maior. Os dois grupos - Alcochete e Aposento da Chamusca - pegaram dois toiros cada e o último, por bonito gesto dos de Vasco Pinto, foi pegado "a meias", depois de os Amadores de Alcochete convidaram quatro elementos do grupo de Pedro Coelho dos Reis, face à desvantagem que havia ao sétimo toiro, o "sobrero", depois de não terem sido pegados o terceiro e quarto, por terem sido recolhidos a meio das respectivas lides.
Por Alcochete, pegaram o cabo Vasco Pinto à primeira e Fernando Quintela também à primeira; pelo Aposento da Chamusca, com o já recuperado cabo "Pipas" na arena a dar ajudas, foram caras Francisco Souto Barreiros à segunda e Francisco Montoya à primeira. O sétimo foi pegado à segunda por Joaquim Quintela, que brindou aos três cavaleiros. Outra pega anterior dos forcados de Alcochete, a de Fernando Quintela, foi dedicada Dr. Manuel Passarinho, conhecido médico ortopedista e grande amigo dos Amadores de Alcochete (e da forcadagem em geral), com ajudas, como atrás referi, de ambos os grupos.
Muitos famosos nas bancadas e no beberete no Salão Nobre, a antecer a corrida, um brinde dos forcados do Aposento da Chamusca à directora da revista "Flash", boa prestação de todos os bandarilheiros em praça e, desta vez, uma direcção de Pedro Reinhardt que pecou ontem por excessos e por uma grande dose de falta de bom senso, sobretudo quando recusou a música e um último ferro a Ventura e quando, precipitadamente e com a cumplicidade e maior responsabilidade do veterinário Dr. Carlos Santos, decidiu mandar para dentro dois toiros, sobretudo o segundo, sem razão aparente para o fazer. Ontem, o simpático e cordial Pedro Reinhardt mais parecia saído da manifestação dos anti-taurinos que batem panelas à porta da praça todas as quintas-feiras...

Fotos Emílio de Jesus/fotojornalistaemilio@gmail.com