sexta-feira, 21 de julho de 2017

Como tudo é tão diferente, quando aparece o toiro de verdade!

Os novos - Manuel Telles Bastos e Luis Rouxinol Jr. - e os velhos - Luis Rouxinol
e António Telles - que ontem se impuseram e disseram que quem manda aqui
ainda são eles!
"Luna de Miel", um toiro de Murteira Grave (terceiro da noite) que fica na História
A corrida acabou com os quatro cavaleiros na arena a receber a ovação de um
público que assistiu entusiasmado a uma grande noite de toiros! Em baixo,
Luis Rouxinol e seu filho. Passou-lhe o testemunho, mas manteve-se no trono


Afinal, não é difícil devolver ao público aficionado a paixão pela corrida de toiros. Basta trazer às praças toiros de verdade como os de Murteira Grave de ontem em Lisboa e toureiro e forcados com alma para lhes fazer frente... Que grande noite!

Miguel Alvarenga - Afinal de contas e como ontem se viu no Campo Pequeno, não é assim tão difícil e muito menos complicado encontrar o caminho certo para devolver à Festa a sua razão de ser, a sua essência e a sua verdade. O seu antigo esplendor. A sua alma, o que nos provoca a sua paixão. E a nossa. E, com isso, trazer o público aficionado - cada vez mais descrente por obra e graça dos toirinhos amestrados que agora estão na moda - de volta às praças.
Com toiros de verdade, com emoção, com suspiros nas bancadas e corações aos saltos, com toureiros e forcados que tenham alma para os enfrentar e que não andem, como outros, a brincar às toiradinhas, a música é logo outra.
E a corrida de ontem no Campo Pequeno foi isso mesmo: uma grande corrida de toiros - com toiros a sério. E com toureiros e forcados a sério. Não é preciso ser génio nem é preciso inventar a pólvora para que a Festa de Toiros volte ao seu caminho, o caminho da verdade. Basta que haja toiros. O toiro foi sempre o elemento principal desta arte. Quando não há toiros, o público farta-se, desconfia dos toiros de brincar que se anunciam, deixa as bancadas vazias. Ontem anunciaram-se os de Murteira Grave e o público foi ao Campo Pequeno.
Se a isto juntarmos o belíssimo cartel, com quatro toureiros representantes de duas das mais dignas dinastias e com dois dos melhores grupos de forcados, conclui-se que, afinal de contas, basta querer para que as coisas saiam bem e os aficionados saiam da praça satisfeitos e a comentar as incidências de um grande (enorme) espectáculo (de toiros) como foi o de ontem. Não é assim tão difícil, pois não?

Digna alternativa de Rouxinol Jr.

Trinta anos depois da alternativa de seu pai, Luis Rouxinol Jr. viveu ontem um momento histórico no Campo Pequeno, recebendo a sua. Houve emoção nas bancadas, houve um Rouxinol pai comovido, os Telles a testemunharam o acto e depois o brinde sentido, na arena, de filho para pai - com o avô de lágrimas nos olhos, na trincheira, a viver um sonho cumprido.
Há que enaltecer, antes de mais, a atitude do jovem Rouxinol de se doutorar com uma ganadaria de verdade, a de Grave. Tal como o fez há um mês Parreirita Cigano com toiros de Veiga Teixeira. Para se ser toureiro e se afirmar como tal é preciso, antes de mais, tourear toiros. E não toirecos de fingir.
Luis Rouxinol Jr. acusou um nadinha o peso da responsabilidade, da praça, do momento. Teve atitude e teve raça. Sofreu um ou outro encontrão, mas o saldo da sua alternativa é positivo e reafirma que temos toureiro - e toureiro de valor. Muito, mesmo.

Telles Bastos, a classe e a ousadia

Manuel Ribeiro Telles Bastos é, não me canso de o dizer, um dos grandes valores da nova geração de cavaleiros e um toureiro que dá gosto ver - pela sua classe, pela sua arte. E também pela sua ousadia.
Lidou ontem aquele que foi o mais reservado dos seis Graves e teve a ousadia de mandar recolher os bandarilheiros e começar a sua lide com uma sorte de gaiola. Coisa de toureiro com alma, coisa de toureiro com coração.
O toiro saíu como um comboio, desalvorado, a cortar caminho e Manuel não se conteve, nem se deteve. Foi por ele dentro e deixou um ferro de emoção e de valor.
Depois o toiro veio a menos, mas o toureiro foi a mais. Lide perfeita, esforçada, ferros cravados nos terrenos da verdade, todo o esplendor e toda a beleza do toureio bonito e bem desenhado dos Ribeiro Telles, na interpretação plena da arte de tourear e cavalgar em toda a sela, à antiga maneira. Bem, Manuel! Muito bem.

Quem é rei, jamais perde a Majestade!

Noite vibrante, com a transmissão do risco, do perigo e da seriedade das seis verdadeiras estampas da séria ganadaria Murteira Grave. Outra música, quando há toiros de verdade. É logo tudo tão diferente.
Noite grande para os grandes António Ribeiro Telles e Luis Rouxinol. Os meninos estiveram muito bem, mas os velhos (velhos são os trapos e vocês os dois são como o Vinho do Porto, cada vez melhores e cada vez com mais sabor), mas quem marcou a noite foram os veteranos, foi a garra (eterna) e o saber da Velha Guarda.
A actuação de António no segundo toiro da noite foi mais que um compêndio, foi a Bíblia, os Lusíadas, o que lhe quiseram chamar, de como se toureia a cavalo. Que coisa empolgante, grande António!
Em escassos dez minutitos, o Maestro demonstrou tudo. Como se medem os terrenos, como se lida, como se cita, como se entra pelo toiro dentro vencendo o piton esquerdo, cravando de alto a baixo, rematando com seriedade e sem números para inglês ver.
Que verdade, Deus meu, que classe, que arte, que lide tão bem executada e que sabor nos deixou a todos ver assim tourear tão bem. O António está imparável e este ano duvido que alguém o agarre. Quem é rei, jamais perde a Majestade - que verdade tão grande e que bem o António a provou ontem.

O grande Luis que veio do nada…

Lembro-me como se fosse hoje. O Luis Rouxinol chegou à alternativa em Santarém, vindo do nada, sem apelido sonante num tempo em que eram todos toureiros de nome respeitado, levado pela mão de um Homem que acreditou nele, porque viveu uns anos à frente do seu tempo e sabia ver as coisas com um olhar distinto. Foi há trinta anos. Esse Homem chamou-se Manuel Gonçalves.
Rouxinol, diziam, não era nome de toureiro. E ele era “popularucho”. Fizeram tudo para lhe fechar as portas. E ele foi-as abrindo à custa do seu valor, só do seu valor e do seu imenso mérito. Subiu degrau a degrau, sempre de cabeça levantada e com um coração de leão que tinha o tamanho do céu. Fez-se grande, agigantou-se, ganhou e conquistou o respeito de todos e à custa de muito lutar chegou a Figura do Toureio. Incontestavelmente, a Figura do Toureio.
Ontem no Campo Pequeno, Luis Rouxinol voltou a fazer História. Assim como quem diz “vim aqui doutorar o meu filho, tenho seguidor, ele é fantástico, mas eu ainda cá estou”. E esteve.
Brilhante, memorável, a lide ao terceiro toiro da noite, o Grave da corrida, depois premiado pela aficion e o saber estar do director de corrida Manuel Gama, com aplaudida permanência na arena, em jeito de volta, no final da lide, todos de pé a aplaudir um toiro à maneira antiga.
Luis Rouxinol esteve imponente e lidou-o com a raça, com a verdade, com a força que o seu toureio hoje tem. Empolgante, apoteótica actuação culminada com um enorme par de bandarilhas, eterna marca do esplendor de um toureiro de alma. O ganadero foi chamado à praça, com justiça e merecimento, dando volta com o público de pé a aplaudi-lo. A ele, a Rouxinol e ao grande forcado Graciosa.

Francisco Graciosa: façam-lhe uma estátua!

A Francisco Graciosa, que deu duas voltas à arena e ontem merecia ter saído em ombros, já deviam estar neste momento a edificar uma estátua à porta do Campo Pequeno.
Alto, magrinho, mas com um coração do tamanho do mundo e um par de braços que só têm os eleitos, o jovem forcado do Grupo de Santarém fez ontem um pegão de arrepiar (parecia impossível que lá tivesse ficado!) ao terceiro toiro da noite, o Grave que marcou a corrida, mas que ele marcou também pela raça, pela decisão, pela alma com que esteve na cara do toiro, mandando na investida, fechando-se no momento certo e depois o toiro deitou o grupo todo abaixo e ele ficou, como se aquilo fosse a coisa mais simples deste mundo, e ficou e voltou a ficar e o toiro a derrotar com violência e ele lá, sem mais sair. Incrível. Um monumento à arte de pegar toiros. Façam-lhe uma estátua. E peçam-lhe desculpa por não o terem levado aos ombros pela rua fora, por lhe terem apenas rendido homenagem nas duas voltas que deu à arena, tudo de pé a aplaudir, mas devia ter sido muito mais. Que tão cedo não vamos ver outra pega assim.
Ainda pelos gloriosos Amadores de Santarém, em noite de triunfo histórico, pegaram o pequeno-grande Forcado que é Lourenço Ribeiro, filho de outro grande elemento do passado, o Vitor Ribeiro, que deu mais uma lição da arte de bem pegar ficando logo à primeira na cara do primeiro toiro da noite; e Luis Seabra, outro jovem de grande poder, que se fechou à segunda no quinto toiro da ordem.
Noite grande para o centenário Grupo de Forcados Amadores de Santarém!

Sofrer faz parte da Glória

Disse-o Padilla e é tão verdade: o sofrimento faz parte da glória.
Os Amadores de Coruche viveram ontem uma noite de sofrimento, mas que em momento algum apagou a glória do seu nome e do seu grande historial. Bateram-se que nem Heróis sem nunca virar a cara, com a dignidade e a honradez do que é ser Forcado Amador.
Pedro Coelho pegou à quinta o segundo toiro da corrida; Paulo Oliveira fechou-se à primeira no quarto, com uma pega imponente; e José Marques foi quatro vezes à cara do último toiro, com o grupo todo a demonstrar uma tremenda valentia, acabando por recolher à enfermaria e depois ao hospital, sendo dobrado por António Tomás, que salvou a honra do convento com uma imensa e valorosa primeira ajuda do cabo José Tomás.
Noites melhores hão-de vir. Os toiros não eram para brincadeiras e os Forcados estiveram à altura das circunstâncias, mesmo que sem o brilhantismo que desejavam. Noite heróica.

E agora tu, Joaquim!

E agora tu, meu amigo Joaquim Grave. Deixei-te para o fim, porque os últimos serão sempre os primeiros.
A ti devemos a noite grande e a emoção que ontem se viveu no Campo Pequeno. Aos teus toiros. Aos toiros de verdade que crias com o amor de quem cria um filho e a vontade de quem traz ao mundo a diferença.
Se os toiros fossem sempre iguais aos teus, acredita (tu sabes) que a Festa teria hoje um outro esplendor. E uma outra verdade.
Essa moda que inventaram agora de criar toiros em laboratório, máquinas de corda que galopam com suavidade e sem maldade ao lado dos cavalos, os cavalos a correr, as meninas a aprender, desvirtuou por completo a essência do que é, ou era, uma corrida de toiros. Como será possível conseguir retirar a agressividade a um toiro? Ainda hoje me custa compreender como se criam, como se fabricam, estes encastes de toirinhos amiguinhos dos cavalos e dos toureiros, que não fazem mal a um mosquito... É o mesmo que criar um encaste de tigres, de leopardos ou de leões para se ter em casa como animais de companhia, chega a ser contra-natura...
Os teus toiros e os toiros de outras ganadarias de verdade, são ainda a chama do que resta desses tempos-outros em que a Festa tinha perigo, tinha emoção, havia glamour e se vivia isto tudo com paixão. E sobretudo, Joaquim, com verdade. E com respeito. Pelo toiro. Pela arte. Pela emoção e pelo risco.
Corridas como a de ontem fazem-nos acreditar que, afinal, nem tudo está perdido. Fazem-nos ter esperança no futuro. E devolvem-nos a emoção do que é, ou era, insisto, a verdade da corrida de toiros, o coração do espectáculo tauromáquico.
És um ganadero de coração. E és um homem de alma. Os toiros espelham, sempre ouvi dizer, a alma dos seu donos. E tu és raça, tu és bravura, tu foste e serás sempre verdade, meu querido amigo Joaquim Grave. Um Senhor!
Gostei menos do quinto toiro, de resto aplaudo os outros todos. E também tu devias ter saído em ombros.
E com isto esqueci-me, Joaquim, de falar aqui das duas últimas lides a duo. Lides de que não sou grande apologista, é confusão a mais, mas a verdade é que tanto os Telles como os Rouxinol se entenderam na perfeição e acabaram por proporcionar momentos de grande entusiasmo ao público que ontem encheu a praça do Campo Pequeno. Em qualquer das lides, voltaram a sobressair os “antigos”, o António e o Luís, que bem eles estiveram ontem. Que grandes lições eles deram e de que forma tão carismática se impuseram à juventude, dizendo que ainda aqui estão e que estão para continuar a fazer a diferença.
Um olé final a todos os bandarilheiros, mas em especial à arte do grande António Telles Bastos, sem desprimor para todos os peões de brega, em noite de trabalho redobrado, muito bem também o Duarte Alegrete. E todos.
Outro olé para a brilhante direcção de Manuel Gama, que esteve assessorado pelo competente e também muito aficionado médico veterinário Dr. Jorge Moreira da Silva.
Esta foi a corrida que fazia falta ao Campo Pequeno e à Festa. Para voltar a pôr tudo “en su sítio” e os pontinhos todos nos iis. De novo em grande e à portuguesa, depois das noites de glória de Padilla, de Álamo e de Manzanares, que abanaram de algum modo a nossa tão bonita arte de tourear a cavalo. Há espaço para todos. E na Festa haverá sempre grandeza - desde que haja o Toiro de Verdade. Nada mais. E nada menos, também. Que grande corrida de toiros!

Fotos Maria Mil-Homens